O suicídio no transtorno bipolar: quando a melhora aparente é o maior sinal de risco
Ele parecia estar melhorando.
Dormia melhor. Voltava a se alimentar com regularidade. Retomou conversas com amigos. Chegou a brincar que finalmente “estava voltando a ser ele mesmo”. A família suspirou aliviada. “É bom te ver assim de volta”, disseram.
Na semana seguinte, ele se jogou do oitavo andar.
Essa não é uma história incomum. Ela é um retrato cruel e recorrente do que a psiquiatria ainda tem dificuldade em reconhecer: o risco de suicídio no transtorno bipolar não se mostra apenas na dor intensa ou na fala desesperançosa. Ele se esconde, muitas vezes, no aparente alívio, na “volta à rotina”, no gesto de alguém que já decidiu morrer — mas que não quer causar alarme.
No transtorno bipolar, o risco de suicídio não atinge o pico no momento de maior sofrimento. Ele se intensifica quando a dor ainda existe, mas a energia retorna. É quando o corpo se movimenta antes que a alma esteja pronta para continuar. E justamente por isso, esse momento é perigoso. Letal.
A ciência já sabe disso. Estudos clínicos e metanálises vêm mostrando, com crescente robustez, que muitos suicídios acontecem não no auge da crise, mas no período seguinte. Segundo uma análise de Tondo e Baldessarini, pacientes com transtorno bipolar apresentam um risco de suicídio até 30 vezes maior do que a população geral. Estima-se que entre 25% e 50% dos pacientes com diagnóstico bipolar irão, em algum momento da vida, tentar suicídio — e aproximadamente 15% poderão consumar o ato.
Esses dados mostram que o transtorno bipolar não é apenas uma alternância entre altos e baixos. É uma condição marcada por flutuações emocionais que sobrecarregam o sistema nervoso, afetam o senso de continuidade da identidade e geram, de forma recorrente, sensação de fracasso e culpa. O risco aumenta, sobretudo, nos momentos de transição — da depressão para a euforia, da euforia para o vazio, da dor para o silêncio.
Mas há algo ainda mais alarmante: apesar de conhecermos essas estatísticas, seguimos falhando em prever o suicídio com precisão. Continuamos tentando identificar risco por meio de escalas padronizadas, questionários e protocolos que, embora úteis, não captam nuances subjetivas, sinais sutis, pequenos desvios que só o olhar clínico atento consegue perceber.
Um estudo publicado na JAMA Psychiatry revelou uma virada promissora nesse cenário. Ao aplicar técnicas de inteligência artificial às anotações clínicas rotineiras dos prontuários, pesquisadores observaram um salto impressionante na capacidade de prever risco de suicídio. Em alguns casos, a precisão aumentou até dez vezes em relação aos métodos convencionais. E sem criar novos questionários ou sobrecarregar profissionais. Apenas analisando com mais inteligência o que já estava escrito.
O que mais chamou atenção foi o que melhor previu risco: não foi a gravidade da depressão. Nem o diagnóstico formal. Foi o comportamento de buscar ajuda. Quando alguém procura atendimento, tenta agendar uma consulta, envia uma mensagem ou comparece a um serviço de saúde, esse gesto é simultaneamente um pedido de socorro e uma possibilidade concreta de intervenção.
O segundo fator mais potente? A intuição clínica. A sensação, muitas vezes difícil de nomear, de que “algo não está bem”. Um olhar, um silêncio, uma frase que passa despercebida nos algoritmos. É essa escuta fina, construída na experiência e no vínculo, que muitas vezes antecipa o risco antes que ele se materialize.
Ainda assim, seguimos buscando segurança em números. Continuamos tratando o risco suicida como um cálculo, como uma nota de corte em uma escala. Mas com o transtorno bipolar, o perigo real está nos detalhes que não cabem nos protocolos. Está na mudança sutil de comportamento, na suspensão repentina de acompanhamentos, no paciente que agradece demais, que organiza seus compromissos, que começa a “encerrar ciclos” sem dizer claramente que está indo embora.
O suicídio raramente é um gesto impulsivo. Ele é, na maior parte das vezes, o desfecho de um processo de desgaste emocional e neurobiológico prolongado, marcado por sofrimento interno intenso, desesperança e isolamento. E no transtorno bipolar, esse processo se repete, como uma espiral. Cada ciclo pode ser mais grave. Cada recaída mais devastadora. Cada aparente melhora, mais arriscada.
É por isso que salvar uma vida não depende de novos exames. Depende de escutar melhor o que já está sendo dito. Depende de confiar mais na sensibilidade clínica. Depende de entender que o pedido de ajuda, por menor que pareça, é um sinal claro de que ainda há esperança. E enquanto houver esperança, ainda há tempo de intervir.
O Referências:
Tondo L, Baldessarini RJ. Suicidal behavior in bipolar disorder: Risk and prevention. *Bipolar Disorders*. 2022;24(2):111-123.
Hawton K, et al. Risk factors for suicide in individuals with bipolar disorder: A systematic review and meta-analysis. *The Lancet Psychiatry*. 2021;8(5):430-440.
McCoy TH, et al. High-throughput prediction of suicide using clinical notes: A machine learning study. JAMA Psychiatry y2024;81(1):12–21.